terça-feira, 15 de setembro de 2009

EDUCAÇÃO FÍSICA: UM NOVO OLHAR



O movimento além da força
Educação física escolar busca integrar-se às outras áreas do saber e fazer com que os alunos não apenas se exercitem, mas adquiram consciência corporal e reflitam sobre suas práticas

Rachel Cardoso



Nos tempos em que o compositor Noel Rosa perguntava, nos versos de Tarzan (O filho do alfaiate), de 1936, quem havia dito que ele era forte, se nunca praticara esporte, nem conhecia futebol, o imaginário popular tinha bem presente a figura do boêmio de saúde precária, filho da mesma linhagem dos poetas românticos que morriam jovens, muitas vezes tuberculosos. À sua figura se contrapunha a do Tarzan encarnado pelo ator e nadador Johnny Weissmuller em filme do mesmo ano: alto, saudável e forte. Natural que, em tempos de construção da nação, as aulas de educação física tivessem como ideia formar jovens que se aproximassem dessa figura, símbolo de homens e de uma nação pujante.

Mais de 70 anos depois, os padrões e preocupações estão bem distantes daqueles de então. A tuberculose saiu de cena - momentaneamente substituída pela gripe A H1N1, popularmente conhecida como suína - e a ideia de força cedeu lugar à de harmonia entre corpo e meio ambiente.

Exemplo disso é a atividade ministrada pelo professor Wallace Oliveira Marante aos alunos do 6º ano do ensino fundamental do Santa Maria, colégio particular na zona sul de São Paulo, durante um percurso por uma das trilhas da instituição. Ao longo de uma caminhada, ele pode aliar os benefícios diretos da prática a aprendizados mais densos. Os conceitos relacionados a atividades aeróbicas foram transmitidos ao mesmo tempo em que as crianças contemplavam as belezas naturais do espaço e desenvolviam com a professora de ciências uma reflexão acerca de preservação e cuidados com o meio ambiente. Mais tarde, o conteúdo aprendido pela turma foi compartilhado com toda a comunidade da escola.

Essa integração entre as aulas de educação física e outras áreas do saber não é um fato isolado. A tendência tem tomado corpo e se mostrado eficiente. "Cheguei ao Santa Maria há cinco anos numa reformulação da equipe de educação física", conta Marante, que também é coordenador de educação física da Escola Morumbi, particular e na zona sul paulistana. "Lutei pela construção de um projeto político-pedagógico que dialogasse com as demais disciplinas."

Foi uma maneira de despertar o interesse não só dos alunos, mas também dos docentes, que a partir desse entrosamento se identificaram com o conteúdo do programa. "Passamos a testar essa proposta por meio de pesquisas que respondiam a uma metodologia científica e a desenvolvemos e adaptamos de acordo com as percepções que o grupo de professores trazia para as reuniões pedagógicas e pelos resultados das ações realizadas", conta Marante.

Outro bom exemplo é o trabalho feito no primeiro ano do ensino infantil, com a troca de registros. "Na educação física os alunos registram e leem os nomes e rotinas das atividades diárias auxiliando o processo de alfabetização", explica. O trabalho continua na sala de aula, quando as atividades realizadas na educação física também são registradas. "É um método de contemplar com maior amplitude a dimensão do pensar."

Trata-se de proposta curricular contemporânea, que ilustra uma tendência da pedagogia do movimento corporal. Mas o Colégio Santa Maria, particular, ainda está entre as exceções. "A educação física escolar vive um momento paradoxal", diz Osvaldo Luiz Ferraz, coordenador do curso de licenciatura da Faculdade de Educação Física e Esporte da Universidade de São Paulo (USP). "Nunca se produziu tanto no meio acadêmico, mas tudo ainda está muito distante da realidade dos professores, que não têm acesso ao conhecimento e muito menos tempo para adaptá-lo de forma adequada à sua realidade."

Segundo Ferraz, nunca a atividade física foi tão valorizada como agora, fundamentalmente por questões relacionadas à saúde. "O conceito de saúde não diz respeito à tradicional área de conhecimento, mas a um estado completo de bem-estar físico, mental, social e espiritual, dentro dos limites de cada um, e não simplesmente à ausência de doenças", diz o estudo Pedagogia do movimento humano: uma pesquisa do ensino e da preparação profissional, assinado pelo professor Ferraz em conjunto com os colegas Myrian Nunomura, Elisabeth de Mattos e Luzimar Raimundo Teixeira.

Esse reconhecimento geral da importância da atividade física é, sem dúvida, decorrente da urbanização, do sedentarismo e das condições de trabalho. Desde o início da revolução industrial, a questão da inatividade física tornou-se uma ameaça à saúde pública e atualmente é considerada o quarto maior fator de risco entre os causadores das doenças que mais atingem o ser humano, conforme aponta o estudo. "Para tentar atenuar os males que afligem a sociedade contemporânea e considerando que a educação para a saúde é um processo de longo prazo, programas de educação física escolar são reconhecidos como um componente-chave na promoção da saúde."

Ferraz destaca ainda que a promoção de hábitos saudáveis é uma herança importante da educação física escolar e essa abordagem já é apoiada em cientificidade convincente. No Brasil, a relação entre atividade física e saúde pública tem incentivado investigações nessa direção e há avanço expressivo de um novo campo de pesquisas e intervenções: a epidemiologia - ciência que estuda quantitativamente a distribuição dos fenômenos de saúde/doença, e seus fatores condicionantes e determinantes, nas populações humanas - da atividade física.

Ocorre que as condições de saúde não são determinadas pelo nível de atividade física, mas pelo estilo de vida, pelas condições físicas e sociais do ambiente, além dos atributos pessoais e das características genéticas. Daí a dificuldade de aplicar na prática a teoria desenvolvida. "Os professores atuam nas mais diferentes condições por conta da diversidade do território brasileiro e da heterogeneidade das turmas, sem contar os hábitos alimentares deficientes", observa Ferraz.

Por isso, afirma o especialista, o desafio dos profissionais é encontrar uma forma para ajudar as crianças a desenvolver um comprometimento com a sua condição física e saúde por toda a vida. "Partindo-se do pressuposto de que as crianças têm motivação natural para a atividade física, o ponto-chave é iniciar um programa de atividades o mais cedo possível, constituído de práticas interessantes e motivadoras e garantindo que as crianças possam ser bem-sucedidas nesse envolvimento."

Nesse sentido, a escola, por meio da educação física, tem sido um dos caminhos para promoção da saúde. A experiência das escolas tem impacto duradouro, seja negativa ou positivamente, o que demanda muita responsabilidade na condução dos programas. "O ideal é que o indivíduo seja capaz de planejar sozinho as atividades e torná-las parte essencial de sua vida", salienta Ferraz.

Baixa atividade
Embora os meios de comunicação promovam o estilo de vida mais ativo, as estatísticas revelam que o nível de atividade da população em geral ainda está aquém do desejado. Uma pesquisa realizada em âmbito nacional pelo Datafolha mostrou que 60% dos brasileiros não praticam nenhum tipo de exercício, um percentual alarmante segundo os especialistas. Os números não são muito animadores em outras partes do mundo. Em Portugal, a população sedentária também chega a 60% e nos Estados Unidos, é de 45%. Na Inglaterra, menos de 20% da população pratica regularmente alguma atividade física com o intuito de beneficiar a saúde. "Crianças ativas nem sempre serão adultos ativos. Da mesma forma, crianças sedentárias não serão necessariamente adultos e idosos ativos", mostra o estudo.

Para Ferraz, a mudança de hábito dependerá da qualidade das experiências e das orientações recebidas nas fases anteriores da vida. Por essas e outras, a educação física precisa dialogar também com a psicologia. "Está comprovada a relevância dos movimentos corporais para o desenvolvimento da criança."

Tem ainda um outro viés, na medida em que os movimentos se tornam uma manifestação cultural. Vide o caso das danças e dos jogos olímpicos. "Não há fenômeno social tão completo como a Copa do Mundo de futebol", avalia Ferraz.
Não que a proposta seja transformar a educação física num discurso sobre a cultura corporal do movimento. A ideia é que por meio da vivência e da reflexão o aluno adquira instrumentos para desenvolver-se em três vertentes, todas elas derivadas da autonomia conquistada: gerenciar a própria atividade física; atender adequadamente aos movimentos do cotidiano; apreciar e usufruir os elementos da cultura corporal de movimento.

"Convém esclarecer que a perspectiva do praticante num programa de educação física pode ser diferente da perspectiva do profissional", alerta Ferraz. "O aluno pode jogar futebol como um fim em si mesmo, mas o professor deve ter clareza dos objetivos educacionais envolvidos na atividade." Ou seja, na escola o conteúdo do jogo é um meio para alcançar os objetivos da escolarização.

É importante destacar que o conceito de movimento implica muito mais do que o deslocamento do corpo e da contração muscular. É por meio do movimento que o ser humano se relaciona com o meio ambiente para alcançar seus objetivos. "Comunicando-se, expressando seus sentimentos e sua criatividade, o ser humano interage com o meio físico e social, aprendendo sobre si mesmo e sobre o outro."


Prática do judô pode ser essencial para que aluno desenvolva necessidade de trabalhar duro para obter êxito nas tarefas diárias (Foto: Maíra Soares)

Mas como implementar um projeto pedagógico no qual as diversas áreas ou momentos educativos não sejam apenas justapostos? Como estabelecer uma intervenção pedagógica em que a especificidade de cada área seja integrada em um todo maior, considerando que as capacidades humanas constituem-se em espaços diferenciados?

Para Mildred Aparecida Sotero, professora da Escola de Aplicação da Faculdade de Educação Física e Esporte da USP - entidade nascida com o propósito de multiplicar metodologia e didática para todo o Estado de São Paulo -, uma proposta curricular cujo objeto de estudo da educação física situa-se na relação do movimento humano com a cultura corporal deve ser expressa por meio de jogos, brincadeiras, ginástica, dança, enfim toda e qualquer manifestação corporal. "É preciso criar um conteúdo multidisciplinar e sua aplicação deve ser casada com a atuação de outros professores", diz.

Um exemplo é o ensino da cultura popular brasileira por meio da dança, como é o caso do maracatu, manifestação da música folclórica pernambucana. "O aprendizado envolveu uma contextualização ampla que transitou pela economia e pela história brasileira, entre outras disciplinas", diz Mildred.

Essa nova educação física constitui uma área do conhecimento fundamental para que os alunos se desenvolvam não somente nos aspectos corporais, mas também nos aspectos relacionais, envolvendo aí a aptidão para trabalhar em grupo, a necessidade de persistir e trabalhar duro para obter êxito nas tarefas do dia a dia e a percepção e consciência de pertencer e protagonizar papéis diferenciados em um grupo de trabalho. Trata-se de uma proposta que é uma importante ferramenta na formação de um aluno competente corporalmente, articulado nas relações envolvidas em uma linguagem diferente da escrita e capaz de refletir e discutir sobre os elementos da nossa cultura corporal, bem como os limites éticos do esporte e do movimento humano.

Sidirley de Jesus Barreto, que leciona a disciplina psicomotricidade nos cursos de educação física, pedagogia e fisioterapia da Universidade Regional de Blumenau, completa que, no Brasil, João Batista Freire defende desde a década de 1980 uma educação de corpo inteiro, tendo a educação física escolar sob essa perspectiva um papel fundamental. "Sabe-se que diante dos avanços nas neurociências, com destaque no que tange à corporeidade para o russo Alessander Luria e para o português Antonio Damásio, que o movimento intencional é a pedra de toque para a organização cerebral, inclusive para a reorganização de novas trilhas neurônicas, no que tange ao aspecto da reabilitação", afirma.

Nesse caminho, aponta a musicalização como um meio de favorecer o letramento e reduzir os níveis de ansiedade e estresse, aproveitando para levar os estudantes a usar as palavras na produção de texto individual e na organização de um conteúdo coletivo. "Quando há espaço para a inter e a transdisciplinaridade, as atividades físicas podem ser trabalhadas nas aulas de português e de idiomas, por exemplo."

Então, sugere Barreto, essa proposta passa a ser de toda a escola, de todos os docentes. Segundo o professor, que também é delegado-adjunto da Federação Internacional de Educação Física de Santa Catarina (Fiep/SC), com a vivência corporal inicial proporcionada pela musicalização estimulam-se também as inteligências múltiplas relatadas pelo psicólogo americano Howard Garner - corporal-cinestésica, musical, interpesssoal, linguística, lógico-matemática, intrapessoal e espacial (Gardner hoje acrescenta outras inteligências a esta lista inicial, descrita nos anos 80). "Estimulo meus alunos a buscarem essa perspectiva", conta. "Mas o mais difícil é conseguir a adesão de todos os docentes."

Na avaliação de Barreto, a educação física escolar, como toda a educação física, atravessa uma crise no plano da intervenção, depois de ter passado por uma crise epistemológica entre as décadas de 1960 e 1990. "Mundialmente, temos produções científicas capazes de dignificar a educação física em âmbito escolar, mas na prática há uma grande dificuldade."

Transpor esse fosso parece ser o grande desafio da atualidade. A legalização da profissão, como ocorreu no Brasil, garante a legalidade, mas não garante e respeitabilidade social. "Esta só acontecerá quando realmente a educação física deixar de ser confundida com o esporte em âmbito escolar e passar a ser importante realmente para todos, em uma práxis transformadora", completa Barreto.

Ele acredita que para superar as questões sociais é preciso não somente ter criatividade, mas competência para intervir, além de saber ouvir e perguntar. "É preciso abandonar a arrogância da academia", pontua. "Temos de buscar fundamentar uma proposta nacional, que leve em consideração as questões regionais e locais."

Está claro que atualmente a educação física convive com uma multiplicidade de propostas de concepções pedagógicas para a escola. "Entretanto, se por um lado essa diversidade parece indicar a riqueza da discussão teórica, de outro lado, na sua maioria, as propostas advogam exclusividade, o que impossibilita o diálogo de teorias que poderiam se complementar", analisa a professora Liana Braid, coordenadora do curso de educação física da Universidade de Fortaleza (Unifor).

Essa necessidade de exclusividade pode, como no clássico samba de Noel, empobrecer a compreensão do mundo, assentando sua força em um ponto único, com consequências próximas daquelas vividas pelo filho do alfaiate: "O meu parceiro sempre foi o travesseiro/E eu passo o ano inteiro sem ver um raio de sol/A minha força bruta reside/Em um clássico cabide, já cansado de sofrer/Minha armadura é a de casimira dura/Que me dá musculatura, mas que pesa e faz doer"

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