Entrevista com Leonardo Boff - O Brasil precisa de duas revoluções: a da educação e a da saúde
O teólogo brasileiro Leonardo Boff foi um dos mais renomados conferencistas do Fórum Mundial da Educação (FME), dividindo a mesa da conferência "Educação, Transgressão e Construção da Cidadania Planetária" com o diretor do Instituto Paulo Freire, Moacir Gadotti e com a senadora Marina Silva (PT), durante a abertura do FME em Belém, no Hangar – Centro de Convenções e Feiras da Amazônia. Leonardo Boff concedeu entrevista ao Portal da Seduc, falando sobre o sistema de ensino brasileiro, defendendo a valorização do professor como um dos pontos de partida para a busca de uma educação de qualidade e políticas que compensem a dívida do Brasil com os afrodescendentes. Traçou ainda um panorama da educação brasileira nos últimos vinte anos. Na opinião do teólogo, iniciativas como o programa estadual "Escola de Portas Abertas" valem como sementes para as escolas seguirem e devem ser apenas o começo de uma rede que pode qualificar o processo educativo.Confira a entrevista:
Portal Seduc: Como o senhor vê o sistema de ensino no Brasil?
Leonardo Boff: Eu acho que no Brasil falta fazer duas grandes revoluções, a da educação e a da saúde; e também poderíamos incluir a da reforma agrária; que nunca foram feitas. Um público ignorante, que não foi gerado numa revolução; e um povo doente, que não fez a revolução na saúde e que não está sentado para garantir a sua vida, é um povo que não consegue dar um salto para frente, rumo a um desenvolvimento sustentado, a uma autonomia, a uma cidadania plena. Então, ninguém está satisfeito com a educação. Embora haja setores que tenham trabalhado de forma alternativa, com a educação cívica, integradora, ecológica. Mas essa não é a tônica geral do processo educativo brasileiro.
Portal Seduc: Então, o que falta para reverter esse quadro?
Leonardo Boff: Acho que a porta de entrada seria valorizar muito mais o professor. Primeiro, valorizá-lo economicamente, para que ele tenha desafogo e possa trabalhar com alegria e, não, subsistindo. Segundo, que ele seja levado a uma educação permanente, com reciclagem, cursos de aprofundamento, encontro entre professores. Em terceiro lugar, que a escola mantenha sempre uma articulação orgânica com a sociedade, com o processo social, com a troca, de tal maneira que a formação não se faça só com a escola, mas com processo concreto da vida. Se um projeto de educação iniciasse com a valorização do professor e a qualificação dele, fazendo que a escola abra as portas para a sociedade, nós faríamos realmente uma revolução.
Portal Seduc: O Ministério da Educação tem o programa Escola Aberta e o governo estadual, por meio da Seduc, tem o programa Escola de Portas Abertas, que tem como objetivo minimizar a violência nas escolas pela socialização de atividades nos fins de semana, com a comunidade. Como o senhor observa iniciativas como essas?
Leonardo Boff: Eu acho que são experiências seminais. Elas valem como sementes, como emulação e provocação para todas as escolas seguirem por esses caminhos. Cada uma com as suas regiões, porque devemos respeitar também a singularidade de cada região, de cada população. Mas o ideal é isso, entender que educação não é passar informações apenas. É acender uma luz na cabeça das pessoas e, isso, durante todo o processo da vida. A vida que é feita de intercâmbio, de trocas de crises, de superação. É esse processo que vai formando as pessoas, dando consciência no sentido de cidadania, de direito. Essas experiências são extraordinárias e boas. Elas devem ser apenas o começo de uma rede que vai qualificando todo o processo educativo.
Portal Seduc: A violência é um problema social e atinge também as escolas. Como o senhor analisa isso?
Leonardo Boff: Há dois fatores que são determinantes para a violência nas escolas. Primeiro, é a violência da sociedade, que é propagada, legitimada e magnificada pelos meios de comunicação. O que as televisões mostram nos filmes adultos, mesmo nos filmes para crianças, que tomam aqueles mitos japoneses, são de extrema violência. Significa que suscita dentro de nós a dimensão agressiva, porque o ser humano tem um lado agressivo - que é pertinente ao processo da evolução -, assim como tem um lado de “benquerença”, de convivência, de autocontrole. Então, uma sentada sobre a magnificação e a exaltação da violência favorece que as pessoas alimentem essa dimensão de violência entre si. Segundo aspecto que é muito grave é a eclipse da figura do pai. Qual é a importância do pai? Ele é aquele que no processo educativo impõe limites aos filhos. A mãe aconchega, acolhe e dá o sentimento de proteção e de amor. O pai é aquele que permite a passagem do mundo familiar integrado e bom de se viver, para o mundo da sociedade onde há conflitos, há contradições e a pessoa tem que aprender a respeitar os outros e as leis. Como na sociedade moderna há um eclipse da figura do pai, o pai foi banalizado e foi substituído por outros fatores da escola. Essa carência da figura dele e daquilo que ele significa, faz com que as pessoas não tenham mais respeito ao professor e isso é um passo para a violência.
Portal Seduc: Como fica o papel da família na escola
Leonardo Boff: Há uma tendência das famílias delegarem à escola a educação dos filhos, o que é um erro, porque a família é insubstituível. Nós nascemos numa família e as relações pai e mãe são fundamentais nos primeiros anos de vida e, se houver uma falha ali, marcará para toda a vida. A escola prolonga a família, mas de um outro nível, que é o da inserção no mundo social, da apropriação do saber acumulado da sociedade, armar a arquitetônica do saber, aprender a orientar-se no mundo. Hoje, as duas instâncias estão em crise. A família está em crise, já que na sociedade moderna não é mais aquela família unicelular e, simultaneamente, a escola está permanentemente em crise, porque não há um projeto escolar e isso tem como efeito que as pessoas se sentem perdidas. Algumas conseguem fazer porque a família acompanha e há pessoas que também reagem e buscam projeto de vida, mas isso deveria ser preocupação do Estado, de dar as condições para que a pessoa vire cidadão, alguém que participe, que tenha consciência de direitos e tenha a capacidade de plasmar o seu destino e organizar a sua vida.
Portal Seduc: Como o senhor avalia os mecanismos de inclusão do ensino no Brasil?
Leonardo Boff: Acho que toda a sociedade brasileira tem uma dívida enorme com os afrodescendentes, porque nós os tratamos como objetos e essa dívida nós nunca pagamos. Numa sociedade de desiguais, tratar todo mundo igualmente é uma injustiça. O que se deve fazer para diminuir as desigualdades e criar condições para que eles possam também entrar na sociedade, participar. Sou a favor de políticas compensatórias, de cotas, mas que haja acompanhamento. O Estado criou isso e abandonou, quando deveria criar uma estrutura de professores e de analistas que acompanhassem as pessoas e elas se sentissem finalmente integradas à sociedade e, não, como estudantes de segunda categoria.
A ignorância do Brasil é uma ignorância política, isto é, interessa ao estamento político dominante que o povo continue ignorante. Eles não temem um pobre. Temem um pobre que pensa, que tem consciência dos seus direitos e escolhe os seus eleitores. Então, há uma ignorância em algumas regiões do Brasil que é alimentada pelos grupos políticos dominantes que mantêm essas massas na marginalidade, da não participação da cultura da formação, da cultura do não-conhecimento e isso nós temos continuamente que denunciar, como nós temos as grandes empresas de comunicação que utilizam a ideologia dominante para enquadrar as pessoas. Hoje, a família Globo forma mais a cabeça dos brasileiros do que todas as escolas. Forma os valores e estilos de vida. E isso não é democrático. Quem delegou à família Marinho o poder de ter acesso à alma do brasileiro? Isso é falsa democracia, é outra forma de ditadura e que nós, educadores, temos que denunciar por amor à cidadania do povo brasileiro.
Portal Seduc: Fazendo uma retrospectiva da educação brasileira nos últimos vinte anos, o que avançou?
Leonardo Boff: Eu acho que ela evoluiu pontualmente. Por exemplo, há setores universitários de ponta que estão no nível de qualquer universidade estrangeira de primeiro mundo. Há também grupos de educação média que são de extraordinária qualidade, que incorporam as compressionais modernas da pedagogia, da subjetividade da psicologia, das tecnologias de informação e há outras que malmente subsistem dentro do velho esquema escolar que mal passaram pelo método escolar de Paulo Freire. É muito desigual o processo brasileiro, e isso apenas denuncia a falta de um projeto coletivo que englobe a todos. Eu sei que é difícil porque o Brasil são muitos “Brasis” e com várias culturas, mas falta um projeto de uma educação básica no qual todos tivessem direito, que servisse de patamar comum, garantido, sólido, para dar saltos de qualidade a uma educação cada vez mais plena
Por Julie Rocha - Seduc
Nenhum comentário:
Postar um comentário